Newsletter enviada em: 07.09.2020

// Música-tema: Tiny Dancer de Elton John //

Eu tomava o bom vinho quando L começou a tirar algumas coisas do limbo. Por coisas, leia-se assuntos do passado, e logo me vi em uma espécie de descontentamento pessoal.

Muito desse descontentamento envolve um cérebro que aprendeu a fingir que eu não vivi a infância e a adolescência (esse cérebro jurou que tudo foi péssimo). Transformando o ato de relembrar em uma tarefa que leva tempo e habilidade para costurar esse tempo. Prática que tem se aprimorado ao longo dos últimos meses e é sempre bom visto que dá para ressignificar algumas cenas. Isso pensando nas partes que de fato foram legais.

Um exercício que não me impediu de visitar o conceito de que algumas memórias não geram as mesmas emoções quando experienciadas de novo. O tom rosado se dissipa conforme você cresce e se redescobre. Gerando uma nova leitura que nem sempre é legal.

Eu fiz umas caretas.

L não entendeu.

Nem eu entendi.

Mas, pelo ponto de vista dela, seria impossível entender as minhas caretas quando se foi a criança feat. adolescente que se envolveu de corpo e alma nas excursões do colégio. Ok que eu também me envolvi. Mais do que gostaria — o que fez as caretas perderem a lógica.

◆◆◆

L não centralizou a conversa em chateações sobre as excursões do colégio (mas óbvio que eu já matutava sobre a fim de analisá-las depois do chat). E o inesperado desse Vale a Pena Pensar de Novo (Ou Não) foi ouvir como L passou a ver tais eventos juvenis como as primeiras viagens — que se amarravam ao falso senso de cabular aula.

A reflexão seguinte foi que, apesar de esse ambiente ser controlado por pais e mestres, a saideira rendia a chance de escapar da realidade. Todo mundo parecia saber disso. Meramente porque havia muito preparo. Como comprar doces!!! Era como ir a uma festa e ninguém seria prejudicado por perder aula porque o nome estava na lista do rolê.

Não queria dizer que não havia insegurança e estresse pairando antes, durante e depois.

Ainda mais quando o maior medo do universo era entrar no ônibus e ficar sem companhia.

◆◆◆

L continuou elaborando e eu tentei entrar na empolgação dela. Porém, alguns tons rosados minguaram.

Lembrei-me da minha versão teen quase tendo um treco às vésperas de algumas excursões. Não era algo relacionado exclusivamente a possível ausência da BFF, pois nada se compara a sua própria ação de se enfiar em ciladas — ainda mais quando é óbvio que é cilada.

Como a excursão (que realmente foi uma viagem) de formatura da 8ª série que eu só não me senti totalmente excluída, porque meu selo de legal compensou (e foi horrível de qualquer maneira). Como ir ao Hopi Hari no 2º ano do ensino médio, sendo que eu tenho pavor de altura — mas eu achei que precisava ir para me enturmar já que estava em outro colégio.

Cheguei a possíveis respostas que ainda estão em análise — até porque raros são os momentos que vou tão longe mentalmente. Ainda é confuso, mas captei que esquecia o mesmo elemento secreto em quase todas as excursões: eu.

Tenho claras lembranças de todo mundo. E das ciladas. Menos de mim interagindo com o meio de forma, digamos, mais positiva.

Só sei que eu estava lá porque eu filmava e/ou fotografava as excursões.

Claramente a pentelha dos anos 90.

◆◆◆

“A experiência era forte o bastante para você sair de si.”

Eu não entendi essa fala de L de pronto. Dormi em cima e meu cérebro engatou flashbacks.

Abriram-se frames de filmes esquisitos que não me davam a sensação de sair de dentro de mim — e vamos de redundância. Eu ficava presa em mim. Eu era uma mera telespectadora. Uma revelação que poderia ser dolorosa o suficiente se eu não tivesse dado uma de L — eu me propus a encontrar uma nova perspectiva sobre as excursões. Um incômodo vem a mim e eu não sossego até ter uma resolução.

A resolução meio que veio quando começou a tocar Tiny Dancer enquanto eu dava um jeito no apê. Novas revelações atingiram meu cérebro. Tons rosados sobre o quanto era mais que demais entrar no ônibus e ir para qualquer lugar (vamos fingir que ninguém sabia pra onde ia naquela época).

Sem dúvidas, as excursões foram o mais próximo do plot de menores de idade com liberdade de ir para um canto (autorizado já que a vida não é filme) e a missão era não se acidentar. Último ponto relativo, pois alguns sequer ficavam sentados, se acomodando nos braços do banco ou se colocando de joelhos para conversar com colegas do banco de trás (e pentelhar os da frente). Ou caminhando pelo corredor com o ônibus em movimento.

As excursões foram o mais próximo do que já diziam naquela época, vida L0k, com direito a pandeiro que ninguém sabia de onde saía (mas era cool cantar Exaltasamba e me restou RIR).

“Um clube secreto”, a voz de ecoou como um fantasma, e fez sentido.

Até eu relembrar que sempre tinha alguém maldoso para lançar umas fofocas/piadas nocivas.

E a gente “caía”. Eram outros tempos…

◆◆◆

Ainda no momento Tiny Dancer, eu me lembrei do dia em que decidi entrar no ônibus sozinha pela primeira vez. O preparo da mochila. A compra da passagem (e o medo de parar em outro lugar!!!). A chegada à rodoviária. Subir as escadinhas, ultrapassar o corredor e ocupar o meu banco. Tons rosados.

A experiência dentro de mim.

De mão dada comigo.

Eu estava ali com inseguranças que não me inspiraram a recusar meu próprio banco (e nem poderia já que paguei por ele). Eu não era uma telespectadora. Eu queria estar naquela situação.

Eu me lembraria de tudo daquela vez.

◆◆◆

O retorno ao colégio se revelou como o ponto mais contrastante dessa conversa sobre excursões.

Independentemente da quantidade de vezes que voltei pra casa de coração partido, o silêncio imperava no processo de retorno. Nem todos ocupavam os mesmos bancos da partida. Não havia mais energia.

Mas havia coisas a serem ruminadas.

Muitos ficavam a sós dentro de seu próprio ônibus mental. Percebendo o mundo além da janela e sentindo o vento na cara. Quase um luto, pois os ruídos eram mínimos. Ninguém se sentia mais tão livre, pois uma hora teríamos que desocupar os bancos (e lidar com um possível coração partido).

Era difícil, pois havia outro ônibus na forma de casa.

— e que poderia não ser uma boa casa.

◆◆◆

A primeira pisada no solo empurrava os espíritos joviais para dentro de suas imaturas existências. A ficha caía — não dava para levar o ônibus com todas aquelas pessoas pra casa.

Mesmo em silêncio, todo mundo já sabia como funcionava a temporalidade na prática.

Só que parecia eterno de qualquer maneira, pois todo mundo se via no dia seguinte.

◆◆◆

2020. Cada um está em seu próprio ônibus (metafórico) e contidos no mesmo túnel. Não é uma excursão ou uma viagem longa, mas um looping existencial. Sem a certeza do dia seguinte.

Não há emoções muito amigáveis e agradáveis. Nem a sensação de se pertencer a um clube secreto.

Não é preciso observar com tanto afinco os detalhes desse túnel para saber que muita coisa já mudou. Como quem ocupa o próprio banco. Como a quantidade de bancos vazios.

O retorno é esperado e temido, pois o mundo em si, mesmo que visto pela janela na maior parte, também não é mais igual.

Nem o tempo.

O que não mudou, talvez, é o desejo de se esparramar em solo firme e viver o externo.

A experiência fora de si.

— e sair desesperadamente de um ônibus que pode ter confirmado não ser uma boa casa.

◆◆◆

Dias depois, L me mandou um zap que dizia: “hoje ocupamos o banco que tem nosso nome, sem chance de ir para outro banco. Acho que nunca foi tão desconfortável ficar sozinha”. Parecia que ela discutia com ela mesma.

“Mas por quê?”, ela me perguntou enquanto eu tentava dar conta do meu cabelo recém-cortado por conta própria. Restou-me ouvi-la concluir o raciocínio, mas nada veio.

Então, eu escrevi em um ímpeto: “a gente tem que se ouvir para compreender de onde vem o desconforto. Só assim pra aliviar os bancos vazios…”

É difícil as certezas me agarrarem, mas captei que preciso me agarrar ao elemento secreto: o eu.

Levando-o ao clube secreto sobre aprender a ficar bem por dentro e não temer tanto os bancos vazios.

Mesmo ainda temendo o túnel de qualquer maneira e o que pode não haver no dia seguinte.

◆◆◆

Imagem em destaque: Athena via Pexels
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