Desisto de escrever.

É difícil raciocinar para costurar as palavras. Em parte, sei que a razão é por não querer abordar meu novo mundo em ruínas que acarretou meus novos funerais. No fundo, não quero experienciar a revivência de parágrafos de um passado próximo, embora minha mente diga que preciso. Um conflito repetitivo que nunca tem um vencedor (ou nenhum vencedor quis se revelar). No entanto, antes de desistir, me comprometo a centralizar novos desejos para encontrar um tema nunca explorado.

Só que tal ideia envolve a esperança sobre um futuro que persevera e isso me dá espasmos de desespero.

Espasmos que elevam um terror sobre tudo que me cerca e o que ainda não aconteceu. Esmorecendo meu interesse na escrita e interesse nem é a palavra correta. É uma falta de alinhamento que me leva a forçar a costura de palavras sobre outros temas, apenas pela sanidade de escrever. Sendo que minha mente clama pela abordagem dos meus novos funerais e isso insere pequenas centelhas nesse conflito repetitivo que deixa de se comportar dentro de mim. Machuca e embarco em comportamentos fora do personagem, como esperar meus funerais passarem, pois, somente assim, os temas solares deslizarão pelos meus dedos.

Vem a obsessão de escrever no dito certo. Com linearidade, quando esse dispositivo exige o que não tenho — ordem. Não sou a personagem roteirizada. Porém, tenho controle, o que me coloca em um ciclo de atropelar novos (e antigos) funerais para focar somente no desenvolvimento do que nunca experienciei: meu desejo de viver. Perduro, meditando sobre as primeiras linhas desse novo livro para alcançar, talvez, um novo prólogo. Nada vem quando me questiono sobre como quero viver daqui em diante, onde me vejo, e como posso continuar diluindo vícios de outros mundos arruinados, linguagens, pensamentos e pessoas.

Reclamo. Mesmo consciente de que nunca terei a ordem e nunca estarei livre dos meus funerais. Não me acalmo e navego no costumeiro ciclo ruminativo, onde me vejo com as mãos desamparadas e escuto as perturbações de uma mente aflita. O coração me consome até culminar no meu desistir de escrever. Pela mera motivação principal de parar de sentir dor ao não ver, ou não conseguir imaginar, um futuro longe de todas as ruínas. Mesmo obcecada sobre a vida, não consigo me alçar nela e parece que nem a vida quer se alçar em mim.

Ao desistir, retorno a um espaço comum. Apenas sobrevivo, diante da estática do meu novo mundo em ruínas, vendo as pessoas em suspenso. Sem escrever, ou pensar sobre qualquer outra artimanha que possa me ajudar a construir meu desejo de viver, perco as perspectivas. Tudo que não vivo é o mais do mesmo que bagunça mais a química do meu cérebro. Entre móveis assombrados, azulejos lascados e sem troca humana. Temas que não me provocam. Não em comparação ao teste de ver até onde é possível ficar sem nada.

Resisto. E a resistência me envolve e me assombra com visões de escritas. Sem me encontrar com a minha dose de escapismo diário, não há nada além do prolongamento do meu exílio em um novo mundo em ruínas que, todos os dias, pulsa as reminiscências do que não mais é. Afunilando minha existência que já nem tinha tanto sabor. Nem fresta de ar. Não há sentido.

Nas raras vezes que há, é desproporcional ao que sinto. Não recupera um tipo de equilíbrio.

O silêncio interno me apropria. Envolvo-me na ilusão de que desistir torna tudo fácil. Sem escrever, nada mais me move, se move, de dentro para fora, de fora para dentro, a fim de me dar noção do tempo em que (não) vivo e dos novos (e antigos) funerais. É outra redoma, que me impede de transbordar as palavras que começam a se aglomerar na minha mente. E a única coisa que sinto, especialmente nos primeiros dias da desistência, é a melancolia. A sinfonia que rege a minha coleção de mundos arruinados. Às vezes, perdendo um acorde pela raiva, o espasmo que treme a falsa normalidade no intento de impulsionar a análise de quem pretendo me transformar ao desistir. A dita chave para eu não abandonar o que me faz existir.

Ignoro. Duramente, concluo que não pareceu o suficiente eu mesma tentar escrever e desenvolver meu novo enredo. Entrego-o aos escritores invisíveis. Não sem temer novas ruínas, já que deixei de sinalizar a minha esperança sobre um futuro que persevera. Ao menos, passadas as primeiras semanas da desistência, não sinto mais o desespero. Mas, mesmo sem olhar no espelho, sei que meu rosto vira uma máscara lívida. Mesmo sem ousar costurar as palavras, sei que me inclino rumo à personificação do endurecimento.

Em algum momento, sinto a perturbação de uma breve febre de desânimo. Dona de um gentil lembrete de que tudo bem eu retroceder da desistência, mas é mero sinal do que vem a seguir: a apatia.

Mais semanas passam e nem percebo as melancolias de novos (e antigos) funerais. Em contrapartida, sinto um pouco de cada uma delas quando vou dormir. Milhões de silhuetas que agem como fantasmas e me ninam com facilidade. Simplesmente porque, nos segundos antes de adormecer, constato não haver mais o que esperar e imaginar.

Sem esperança, a falsa normalidade se estende e a acompanho no mais fiel possível. Carregando meu novo mundo em ruínas. Sentindo os lábios ressecarem pela mudez que não cala a mente. Estou aqui, no presente. Sinto-me adulta e responsável, pois não há devaneios sobre como costurar as palavras. De início, funciona. Quem se acostumou com o silêncio, já tem latente a verdade de que as próprias palavras não importam e nunca ultrapassarão as paredes.

Resta eu em interação com o nada. Não há perturbação, a não ser aquelas que fazem parte da falsa normalidade. Entre uma pausa e outra, me observo e me julgo sobre ter aprendido bem demais a me punir. Pelo que deu certo, pelo que deu errado. E desistir quer vingar como um precioso novo antídoto, pois elimina todas as ruminações e angústias. Há uma inautêntica paz, visto que nada impede a melancolia de me perseguir pelos calcanhares. Assombrando-me ao dizer que essa é uma forma errática de querer viver. Barganho, claro, pois desistir traz o benefício da inércia do existir. Mas… Toda barganha tem um preço e aqui jaz a elegância, as palavras, a poesia, o ritmo de uma música. Brota-se o vazio, onde nada atinge um nervo para eu reagir.

Pensamentos intrusivos são inevitáveis. Uma espécie de saudosismo, ou uma travessia enlutada, me faz lembrar de quando escrevia, de uma história esquecida em um notebook que nem liga, da saga que amei tão bravamente, notas de campo escritas para eu não me esquecer, a intenção de descobrir sobre o que se foi e o que não mais é após meu mundo anterior ruir. Vem o espasmo de que perco algo e o silêncio começa a me pressionar para recuar dessa desistência. E recuo no enturvar de uma promessa: se for para ser, a escrita retornará e eu não precisarei sufocar as linhas para evitar os temas que querem sair de mim.

Mantenho-me em convívio com a falsa normalidade. Perambulo pelos cômodos. Analiso os cantos. Concretizo o habitual. Passado um mês, se projeta meu desdém e desafio a impossibilidade de escrever ser a única coisa que sei fazer. Na teimosia de não querer romper minha resistência, busco alternativas (para me desvalidar). Na ilusão de que quero algo mais que páginas em branco. De um cursor insistente. De personagens que pedem direitos. Mesmo sem encontrar uma contraprova, digo que escrever é um vício imaturo enquanto, devagar, a redoma construída pela desistência quer me dilacerar.

Sem eu autorizar, as palavras começam a se organizar no meu espaço mental e tento vetá-las. Ato que incha meu silêncio o suficiente para me lembrar de que tenho nervos onde as palavras ainda se costuram. Como quando acordo em um quarto que funcionaria como o cenário de um hospital psiquiátrico. Quando passeio pelo corredor e me vejo em uma distopia. Quando apareço na cozinha e insiro a silhueta de alguém, um amor, talvez, para fazer o café junto comigo. Quando ocupo o mesmo posto de trabalho e penso em me rebelar como Katniss Everdeen. Quando chega a noite, me sento na cama, observo as mesmas paredes que me saúdam pela manhã e arrisco abrir a boca para dar mais espaço às palavras aglomeradas.

E, enfim, a química do meu cérebro agradece pela dose renovada de oxigênio.

Vem a clareza. Escrever nunca deixa de me chamar por eu querer liberdade e nunca me ensinaram sobre liberdade. Deve ser por isso que também aprendi bem demais a tirar meus próprios direitos. Também nunca me senti segura para contar minha própria história e, no fundo, sei que só quero diminuir o peso dos meus mundos arruinados e deixar de me ver como uma pessoa assombrada. No fim, só quero crer que todos os meus funerais podem ser encapsulados em temas solares. A chave verdadeira para eu não mais desistir do que me desvia do desespero, e até da esperança, quando não há sinais do futuro que persevera.

Logo, não desisto de escrever.

Não resta nada a não ser encerrar o conflito repetitivo que sempre quis revelar um vencedor. Porém, passei tempo demais concentrada em ir contra ao que nunca me negou. Vem outra paz, a autêntica, e é fácil raciocinar para costurar as palavras. Atitude que orna muito mais com quem aprendi duramente a ser. Ao menos, por agora, pois ainda não sei em quem me transformei. Mas assumo de novo a cadeira e me acomodo diante de uma nova página em branco. Do insistente cursor. Ouvindo os personagens que seguem pedindo direitos.

E eu também peço meus direitos, a partir da verdade de que preciso parar de fugir da única certeza que tenho sobre mim para enfrentar meu novo mundo em ruínas. Para desbravar o desconhecido. Foi o que minhas versões passadas encontraram para sobreviver em outros mundos arruinados. Para dar voz aos temas e se dar a voz para romper os próprios silêncios.

Na ruminação ou na resistência, e na possibilidade de uma nova desistência, o caminho para fora desse conflito repetitivo sempre é o mesmo: não há acordo para abandonar a única coisa que me alça na vida e que me faz existir enquanto aprendo a não desistir do meu desejo de viver.

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Texto originalmente escrito para o Coletivo Escreviventes.

Foto em destaque: Min An via Pexels.

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